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Onde estão os pais no Brasil? O abandono paterno machuca milhares de crianças e mães solo.

Quando a analista de relacionamento Shirlene Pereira, 37 anos, engravidou do primeiro filho, a reação do ex-marido foi de alegria genuína. Mas isso não se repetiu quando ficou grávida uma segunda vez. “Estávamos em um casamento falido em que não nos relacionávamos mais. Engravidei em um desjejum e, quando contei a ele que estava grávida, ele ficou uma arara. Disse que não tinha feito nada comigo, que a filha não era dele”, lembra.

 

Mãe de Carlos Eduardo e Larissa, hoje com 18 e 15 anos, Shirlene diz que, mesmo quando ambos eram nascidos, o ex-marido não participava da criação dos filhos. Ele era emocionalmente distante e financeiramente instável – ficava pouco tempo em empregos e a impedia de trabalhar sob o pretexto de que “ele é quem deveria cuidar da família” – hoje, ela entende que estava em um relacionamento abusivo.

 

Mas o dinheiro não chegava. “Lembro de um mês em que tínhamos só uma caixa de nuggets no freezer. Fritava dois e cortava em pedaços miudinhos para as crianças comerem. Matava minha fome com água gelada. Cheguei a pesar 49 kg”, conta.

 

Pouco depois, o ex-marido sumiu do mapa – até hoje, nem ela e nem os filhos sabem onde ele está. Nem mesmo na audiência para discutir a pensão alimentícia ele apareceu. Shirlene ainda descobriu que o dinheiro que ele supostamente depositou ao longo de um ano, foi na verdade pago pela avó paterna das crianças.

 

“Me sentia impotente e culpada por ter escolhido esse pai para os meus filhos. Quando os levava para a escola ou tinha festa de Dia dos Pais, via as outras crianças acompanhadas pelos pais delas e sentia meus filhos tristes por não ter essa presença para eles. Eu também ficava”, diz, tentando conter as lágrimas. “Quando lembro dessa situação, me dá ansiedade.”

 

Shirlene é uma das mais de 11 milhões de mulheres brasileiras que cuidam sozinhas de seus filhos, dado que foi atualizado em maio deste ano pelo Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas, e escancara a epidemia de abandono paternal enfrentada por diversas famílias brasileiras. Ela também faz parte da estatística que diz que, entre 2012 e 2022, 90% das mães solo são negras.

 

A falta da figura do pai dentro das dinâmicas familiares, problema naturalizado em todo país, tem sido mais discutida e questionada a passos pequenos – muito pelas próprias mães solo, que tentam levar o assunto para a superfície do debate público. Mesmo com alguma notoriedade, a responsabilização de homens diante da paternidade não aumentou.

 

No último ano, o índice de crianças registradas sem o nome do pai cresceu 1,6%, de acordo com números da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil): foi de 162.409 para 165.050 entre janeiro de 2022 e 2023 – considerando que 2,5 milhões de bebês nasceram neste período no país.

 

A psicóloga, filósofa e professora da Universidade de Brasília (UnB) Valeska Zanello, pesquisadora na área de saúde mental e gênero, diz que essa estatística tão elevada está relacionada à forma como os homens são socializados na cultura brasileira, que é machista e patriarcal. Ao contrário deles, as mulheres são educadas por uma pedagogia afetiva que é demarcada por um dispositivo materno, como Zanello define.

 

"Esse dispositivo tem como centro o hetero-centramento, que ensina a mulher a sempre priorizar os desejos, anseios e necessidades do outro em detrimentos dos próprios. Já os homens são direcionados pelo oposto, o egocentramento, em que se colocam em primeiro e depois vem os outros. Na nossa cultura, as mulheres cuidam dos homens e para os homens enquanto eles podem cuidar da própria vida", define.

 

A pesquisadora afirma ainda que a culpa é "naturalmente" instalada neste dispositivo materno, e é o mecanismo mais eficiente para garantir seu funcionamento. "Enquanto elas não podem dizer não, eles lucram com uma alienação afetiva das mulheres que é gerada por esse dispositivo."

 

A vivência da analista de e-commerce Nathália Custódio, 28 anos, escancara essa operação. Ela precisou lidar sozinha com uma gestação enquanto o ex-companheiro, um jogador de futebol, se ausentou deste momento porque jogava em um clube em Portugal. Isso a fez passar por todo processo sozinha – desde consultas médicas às transformações sociais, físicas e hormonais pelas quais seu corpo passava.

 

“No primeiro ano de vida, estávamos juntos. Até me surpreendi porque ele estava presente. Quando meu filho tinha um ano e meio, a chavinha virou e ele passou a fazer de tudo para me culpabilizar e impedir que eu seguisse minha vida. Disse até que o filho não era dele”, diz. “Mesmo quando ele estava no Brasil e podia pegar o filho, não o fazia. Tinha muita pirraça porque não queria que eu saísse, tivesse uma vida. Era uma punição. Não era justo eu ter esse fardo sozinha.”

 

De repente o pai sumiu e se mostrou desinteressado pela vida do filho, Henry, hoje com 8 anos. Mesmo comendo em restaurantes caros e ostentando uma vida de luxo na Europa, o dinheiro que enviava era R$ 100 a R$ 200 reais – isso quando enviava e se não atrasasse. Enquanto isso, Nathália teve que voltar para a casa da mãe, com quem teve conflitos, e, depois, foi morar com o pai em outra cidade.

 

Em meio a disputas judiciais e não cumprimento de pensões alimentícias, as mulheres precisam fazer malabarismos para conseguir sustentar a casa com pouco ou nenhum apoio. Há ainda um agravante: segundo a FGV, as mães solo têm rendimento 39% menor se comparado aos homens com filhos, e 20% menor do que as mulheres casadas com filhos.

 

Para poder prover ao filho, Nathália era vendedora de domingo a domingo e passou a emendar turnos noturnos como segurança em eventos, pela empresa do pai dela. Quando não tinha com quem deixar o filho, perdia a renda extra para que ele não ficasse sozinho.

 

“Chorava muito porque, enquanto vivia isso e não tinha com quem deixá-lo para trabalhar, via o pai na balada, bebendo combo, curtindo com os amigos”, narra. “Tentava procurar emprego, mas ninguém queria me contratar. Além de mãe solo, sou uma mulher preta. Então, sou descartada e anulada profissionalmente duas vezes mais.”

 

"Quando vai cantar parabéns em aniversário, é sempre o pai, a mãe e a criança. No meu caso, era só eu. Aquilo sempre me incomodou, me sentia sozinha. Minha mãe percebeu e começou a vir comigo para perto do bolo. Hoje o pai tem uma relação com o filho, paga pensão. Mas se tudo isso acontece agora foi porque eu forcei e não desisti", complementa Nathália Custódio.

 

Shirlene também precisou passar por jornadas de trabalho exaustivas, que durava 12 horas, e chefes que não a permitiam – e até hoje, torcem o nariz quando ela precisa – que se liberasse para poder levar os filhos ao médico ou ir a reuniões na escola. Os patrões sequer acatavam a possibilidade de uma compensação ou comprovante de horas.

 

“Perguntavam se não tinha ninguém para me ajudar ou achavam que eu estava dando uma desculpa. Como trabalhava muito, perdi muitas etapas importantes da vida das crianças. Nunca trabalhei em espaços em que minha posição como mãe solo era compreendida. O mercado de trabalho não está preparado para lidar com a gente”, desabafa.

 

"Tenho pena do pai dos meus filhos. Ele perdeu o melhor das crianças – formatura, batismo, feira cultural – e a evolução deles em tudo. Ele não tem nada. Eu tenho tudo", finaliza Shirlene.

 

A advogada Ana Brocanelo, especialista em Direito de Família e Sucessões e membro da Comissão de Direito de Família da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) São Paulo, explica que as empresas continuam dando preferência à contratação de homens entre 25 e 45 anos. “É justamente a fase em que a mulher está em casa cuidando dos filhos”, diz.

 

“Ainda sob o aspecto financeiro, é fato que quem detém a guarda dos filhos e o domicílio fixo tem um gasto muito maior do que o genitor que mantém apenas a convivência quinzenal. Mesmo que aquele pai pague a alimentação, dificilmente a conta fecha”, continua.

 

Não é preciso que exista um abandono paterno propriamente dito para que se encontre essa ausência do pai. Porque as mulheres sempre são encarregadas do cuidado, homens em relacionamentos estáveis não veem problema em relegar as funções às mulheres por serem “naturalmente aptas” a isso.

 

No início do mês, a atriz e estudante de psicologia Anaterra Oliveira viralizou no Instagram com um vídeo em que pergunta a homens e mulheres nas ruas o tempo que passam cuidando dos filhos. Enquanto as mulheres respondiam cargas horárias de 14 horas e até 24 horas, algumas respostas dos homens foram: “Uma hora, mais ou menos”, “Poucas horas, mas todo final de semana falo com eles”, “10%”.

 

A maioria reconheceu que as mulheres são as que mais passam tempo com os filhos. O motivo? “Instinto materno” ou ainda “O homem trabalha, é o provedor, e a mulher é dona de casa. Em alguns casos é exceção”.

 

Ela teve vontade de fazer a investigação porque ela própria teve um pai ausente, que aparecia apenas em datas comemorativas. Também teve um relacionamento com um homem que convivia quinzenalmente com a filha, mas não tinha tantos cuidados com a criança.

 

“A ideia de ter um filho parece linda, mas as responsabilidades da maternidade me assustam. Por outro lado, vejo que ser pai parece ser uma tarefa muito mais fácil na maioria dos casos”, diz a atriz. “Quis escancarar essa diferença e falar da sobrecarga feminina para gerar reflexão. As pessoas precisam parar de naturalizar a ausência paterna e de romantizar a maternidade como se fosse um dom feminino, como se a sobrecarga fosse um sacrifício."

 

De fato, isso resvala no fato de as mulheres dedicarem 9,6 horas a mais por semana do que os homens em afazeres domésticos e cuidado de pessoas. É o que diz dados divulgados na última sexta-feira (11) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Vale um adendo: a carga horária ainda é alta, mas pela primeira vez ficou abaixo das 10 horas. Em 2022, o tempo realizando tarefas domésticas era de 21,3 horas para as mulheres e 11,7 horas para os homens.

 

Como os homens citam no vídeo de Anaterra Oliveira, o tal do instinto materno faz parte da narrativa que “aprisionam” as mulheres a este papel – e também é o que torna mais natural para os homens simplesmente não se responsabilizarem sobre a paternidade. No entanto, mesmo que repetido até hoje, o instinto materno não passa de um mito – que aliás já foi desmentido no século passado.

 

Em 1916, a psicóloga educacional norte-americana Leta Hollingworth, que se dedicou a desmentir diversas falácias tidas como “científicas” sobre as mulheres, escreveu um artigo publicado pelo American Journal of Sociology em que diz que o dito instinto materno é um mecanismo criado por uma estrutura de poder que queria empurrar as mulheres à função reprodutiva para não comprometer a taxa de natalidade.

 

"Há uma forte e fervorosa insistência no [mito do] ‘instinto materno’, que tem como propósito categorizar as mulheres igualmente e dar a elas um desejo arrebatador pela maternidade. [...] Não há nenhuma evidência verificável para mostrar que existe um instinto maternal em mulheres de tal força e fervor que as impelem voluntariamente a buscar a dor, o perigo e o trabalho exigente envolvido na manutenção de uma alta taxa de natalidade", escreveu Hollingworth.

 

As estruturas judiciárias absorveram esse mito e reconhecem que o cuidado é “papel da mulher”. O recado para os homens é de que eles têm passe livre para poder abdicar do papel de pai – seja por meio do abandono paterno, seja ao atribuir o grosso para a mãe da criança e “ajudar” (lê-se contribuir) com o mínimo possível. O exemplo disso está, por exemplo, na disparidade de período da licença-maternidade e paternidade do país, em que mulheres passam até 120 dias em casa e homens, apenas cinco – que podem ser estendidos para 20.

 

Em dezembro, a Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº 1974/21, que visa instituir licença parental para mães, pais ou pessoas do vínculo socioafetivo das crianças em até 180 dias. A proposta é dos deputados federais Sâmia Bomfim (PSOL-SP) e Glauber Braga (PSOL-RJ) e segue uma tendência mundial, que já foi implementada na Espanha, por exemplo.

 

Entre avanços no Brasil, Ana Brocanelo cita o reconhecimento voluntário de paternidade de crianças sem o nome do pai no documento pelo Conselho Nacional de Justiça, que pode ser feito por qualquer homem que queira se reconhecer pai da criança. Em caso de negativa, as mães podem recorrer à Justiça para que se abra uma ação de investigação e de reconhecimento de paternidade.

 

"A convivência ainda não é obrigatória como a pensão – que inclusive é passível de prisão –, mas há grande movimento do judiciário na fixação de aplicação de multas e indenizações para aquele que faz o abandono afetivo. Acredito que em breve haverá legislação mais eficaz no cumprimento das obrigações emocionais pelos pais ausentes", avalia a advogada.

 

Outro ponto positivo é que existem pais que, além de cumprirem com as devidas responsabilidades, reconhecem esse sistema de privilégios patriarcais e buscam romper com esse pacto.

 

O coordenador de projetos industriais Paulo Miranda, 41 anos, vivenciou o abandono paterno e passou anos procurando pelo homem que o deixou. Além de perceber as marcas dessa dor em si próprio, ele se voltou para esse entendimento para não repetir erros com os próprios filhos e a mãe deles, hoje sua ex-companheira. Também começou a criar grupos para discutir sobre masculinidade, tanto para se entender como para dialogar com outros homens.

 

“O abandono paternal é um problema crônico e de responsabilidade dos homens”, pensa. “Há uma hipocrisia masculina ao se postar fotos de grande pai nas redes, por exemplo, e abortar os filhos na vida real. Se as mulheres, principalmente mulheres negras, conseguem criar os filhos mesmo privadas de seus direitos, porque nós não conseguimos manter o mínimo de presença ou ao menos pagar a pensão gozando desses privilégios?"

 

Ele acredita que por mais que exista um interesse maior nesta conversa, em um cenário de forte desigualdade de gênero e social, o acesso a ela segue sendo mais um privilégio do que uma chance ao amadurecimento em si. "Aqueles que podem acessar a paternidade com responsabilidade e afeto precisam levar a conversa para lugares onde mais pessoas possam falar a respeito. Não dá pra falar disso sem falar de políticas públicas que permitam que todos tenham essa oportunidade."

 

 

Um abraço para todos.

Ana Brocanelo – Advogada.

OAB/SP:176.438

Fonte: Revista Marie Claire - Mães e filhos. "Onde estão os pais no Brasil? O abandono paterno machuca milhares de crianças e mães solo". Por Camila Cetrone, redação Marie Claire. Publicado sob licença e permissão da revista Marie Claire.

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